Perda e TDAH

Encontrar o seu espaço.

A sensação de perda é algo com que pessoalmente tenho dificuldade, e na minha prática profissional, atendendo na clínica, percebo que muitas outras pessoas compartilham dessa situação. Essa perda pode ser de entes queridos, fases da vida, expectativas, trabalho, amizades, entre outras coisas. Cada um sabe o valor e o peso de suas próprias perdas; minha dor não é mais nem menos significativa que a de outros, portanto cabe a mim, saber entender, identifiar e compartilhar minhas necessidades e limites com o mundo ao meu redor.

Recentemente, uma morte na família, não diretamente relacionada a mim, mas associada a pessoas queridas, me fez refletir sobre minhas próprias perdas (no plural mesmo) e suas intensidades. Como este espaço é destinado a ajudar, a acolher e, a transmitir informações sobre o TDAH, achei que valia a pena compartilhar minhas reflexões (já que sou profissional da área de saúde mental e tenho o transtorno). Todos enfrentaremos a dor da perda, com ou sem neurodivergência. No entanto, é importante observar que, se temos esse transtorno, a expressão de nossos sentimentos pode ser diferente, e a intensidade da reação pode nos fazer sentir "fora de tom", portanto irá existir uma peculiaridade na associação entre uma experiência de perda com um cérebro TDAH.

A seguir irei explicar um pouco sobre a desregulação emocional no TDAH e o processo de luto (processo que ocorre quando vivênciamos a perda), e como esses pontos associados podem trazer uma situação mais complexa e muito dolorida para as pessoas, quando não se tem conhecimento do que está acontecendo.

Embora a desregulação emocional não seja um sintoma oficial do TDAH (não é algo que o DSM-V busca ativamente como sintoma), é muito comum entre as pessoas com esse transtorno. Ele prejudica nossa capacidade de regular emoções (no nosso autocontrole), influênciando na percepção e vivência de situações dolorosas com mais intensidade (hoje temos pesquisas que mostram que os sintomas depressivos vivênciados por pessoas com TDAH, são mais intensos do que aquelas sem).

Essa desregulação emocional ocorre em parte devido à fraca conexão entre a nossa amígdala (parte do cérebro que é responsável pelas nossas reações emocionais), e o córtex pré-frontal, que é responsável por regular essas emoções (ele que fala para respirarmos fundo e pensar nas possibilidades, e que vai dar tudo certo), o que facilita reações impulsivas e/ou aparentemente desproporcionais à situação, além de dificultar no manejo das mesmas depois que a situação já passou ou s encerrou, dependendo da pessoa e da situação, pode levar um dia ou uma semana inteira para lidar com as consequências e para manejar esse sentimento. Além disso, o sistema de recompensa no cérebro TDAH, vai preferir soluções e opções em que as recompensas sejam imediatas, o que pode nos colocar em situações em que escolhemos e/ou tomamos decisões de forma impulsiva, prejudicando nossa vida e nossos relacionamentos em diversas áreas (familiar, romantica, trabalho e de amizade), como por exemplo, por um desentendimento rompermos uma amizade que nos faz muito bem.

Já o processo de luto, naturalmente irá afetar nosso desempenho no dia a dia, vai afetar nossa atenção, concentração e energia para lidar com os desafios e tarefas. Por sinal, no processo de avaliação de diagnóstico para o TDAH é importante entender se existe um processo de luto ocorrendo, pois ambos tem esses sintomas associados (desatenção, fadiga, dificuldade de concetração e foco) e as estratégias para o tratamento vão ser diferentes nesses casos, já que nosso cérebro neurodivergente, além de toda a fragilidade de autocontrole e manejo das emoções, irá estar mais vulnerável a desenvolver um quadro depressivo, desenvolver abuso de substâncias para tentar lidar com o sofrimento.

Nesse contexto, que já é difícil manter uma consistência de hábitos, de manter uma rotina e manejar as necessidades de estímulos com o fato de ter que dar conta das obrigações, é colocado um fator que naturalmente irá afetar, entre outros, esses ámbitos, o resultado é um sofrimento muito intenso, e uma paralisação completa do indivíduo, que muitas vezes não vai conseguir entender nem perceber o que esta acontecendo, por justamente, o TDAH também afetar nossa autopercepção (temos uma dificuldade maior de entender e saber o que está acontecendo internamente conosno), isso se estamos falando de uma situação em que a pessoa não está fazendo nenhum acompanhamento/tratamento para o manejo do TDAH e/ou não tem nenhum dignóstico por profissional qualificado.

Compreender esse funcionamento é fundamental para entender como a perda (o processo de luto) vai influênciar um cérebro TDAH. Isso nos permite pensar em como acolher de forma eficaz nossos próprios sentimentos e necessidades ou os de pessoas próximas que estejam passando por um momento difícil e possuam o transtorno, ou ainda, como atuar de forma mais eficiente como um profissional dentro da clínica.

Então pensei em compartilhar algumas estratégias básicas para lidar essa situação (para você ou para outros):

  • Promover rotinas saudáveis que melhorem o seu bem-estar;

    • É mais fácil falar do que fazer, por mais clichê que seja, a tendência nessa situação vai ser parar com tudo, paralizar completamente, e é justamente fazer o contrário que irá ajudar, mesmo que seja necessário dar tempo para sentir a dor, isso não quer dizer a mesma coisa que parar de se alimentar ou de sair de casa de vez em quando, mas sim, ter mais compaixão e menos pressão de mascarar que você está bem nos diferentes ambientes.

    • Sugiro pedir ajuda se for muito difícil sozinho, ter alguém que confirme e/ou te ajude a manter esses hábitos, vai diminuir a pressão de sentir que está lidando “sozinho” com tudo.

  • Criar momentos para se conectar com os sentimentos e pessoas, seja através de conversas ou atividades em conjunto;

    • Aqui construir uma comunidade (não sei quem teria energia para isso nessas horas, mas via que?) ou achar alguma, ajuda de mais. Mesmo que seja a galerinha do vôlei do final de semana. Um grupo no qual você se sinta confortável e fazendo parte, é algo que pode ser essêncial.

  • Deixar claro que é normal sentir tristeza e que você ou outras pessoas estão presentes para dar apoio;

    • Aqui é a comunicação, como sempre, saber como identificar o que está sentindo e saber como comunicar para os outros é crucial, se não, não conseguimos nem dar o passo inicial.

  • Permitir-se compartilhar sua própria tristeza na frente das pessoas, mas saiba identificar os locais que não vão te fazer bem;

    • Aqui vem a questão do masking (ainda vou fazer um texto sobre isso, mas quando vier uma inspiração), se permitir abrir mão da fachada de que “está bem”, de que está “lidando bem”, mostrar a vulnerabilidade e se permitir ser cuidado. Claro que, nem todo lugar dá para fazer isso ou é seguro fazer isso, escolher onde seja possível, é uma forma de dar limites, seja para nos proteger ou proteger as nossas relações, mas PRECISA ter lugares em que você se sinta seguro de não se preocupar com isso.

  • Manter expectativas (internas e externas) adequadas, mas também manter a flexibilidade, paciência e gentileza.

    • Você não vai funcionar “normalmente”, vai ser mais difícil do que antes, mais cansativo, e a vida vai ficar mais melancólica durante um tempo. Então, não espere por algo diferente, você vai sentir tristeza, vai doer, é para ser assim, você não vai ser o funcionário do mês nesse momento. Novamente, respeitar isso não significa paralisar tudo, não significa parar de se alimentar, mas entender que não vai ser o momento de se sentir feliz, energético ou produtivo no trabalho. Se de o tempo, porque as coisas vão melhorar, esse processo passa.

Por mais que sabemos que existe uma desregulação emocional e os sentimentos são mais intensos, a pesquisa sobre luto em populações neurodivergentes não é extensa o suficiente para saber se aqueles com TDAH experimentam reações completamente únicas e restritas ao transtorno. No entanto, como mencionado anteriormente, muitas pessoas com o transtorno experimentam emoções intensamente, o que pode dificultar a saída desse quadro, a piora dele, e o aumento de sua complexidade com comorbidades (como desenvolver uma depressão).

Portanto, compreender esses desafios é fundamental para construir estratégias e ferramentas que ajudem a cooperar nesses momentos difíceis. Saber que você é uma pessoa neurodivergente, saber o que isso significa na sua vida, como isso afeta e influência no dia a dia, são passos essênciais e necessários, para que caso você viva uma situação assim, você consiga manejá-la e/ou saber como e onde procurar ajuda, caso contrário será uma situação muito dolorosa e potêncialmente perigosa, não só para a sua saúde, mas para as outras áreas da sua vida, trazendo consequências a longo prazo.

Anterior
Anterior

A ressignificação da relação entre dor e prazer

Próximo
Próximo

É multitasking, desorganização ou manejo da desatenção?